Cantiga de enganar
O mundo não vale o mundo, meu bem.Eu plantei um pé-de-sono,brotaram vinte roseiras.Se me cortei nelas todase se todas me tingiramde um vago sangue jorradoao capricho dos espinhos,não foi culpa de ninguém.O mundo, meu bem, não valea pena, e a face serenavale a face torturada.Há muito aprendi a rir,de quê? de mim? ou de nada?O mundo, valer não vale.Tal como sombra no vale,a vida baixa... e se sobealgum som deste declive,não é grito de pastorconvocando seu rebanho.Não é flauta, não é cantode amoroso desencanto.Não é suspiro de grilo,voz noturna de correntes,não é mãe chamando filho,não é silvo de serpentesesquecidas de mordercomo abstratas ao luar.Não é choro de criançapara um homem se formar.Tampouco a respiraçãode soldados e de enfermos,de meninos internadosou de freiras em clausura.Não são grupos submergidosnas geleiras do entressonoe que deixam desprender-se,menos que a simples palavra,menos que a folha no outono,a partícula sonoraque a vida contém, e a mortecontém, o mero registrode energia concentrada.Não é nem isto, nem nada.É som que precede a música,sobrante dos desencontrose dos encontros fortuitos,dos malencontros e dasmiragens que se condensamou que se dissolvem noutrasabsurdas figurações.O mundo não tem sentido.O mundo e suas cançõesde timbre mais comovidoestão calados, e a falaque de uma para outra salaouvimos em certo instanteé silêncio que faz ecoe que volta a ser silênciono negrume circundante.Silêncio: que quer dizer?Que diz a boca do mundo?Meu bem, o mundo é fechado,se não for antes vazio.O mundo é talvez: e é só.Talvez nem seja talvez.O mundo não vale a pena,mas a pena não existe.Meu bem, façamos de conta.de sofrer e de olvidar,de lembrar e de fruir,de escolher nossas lembrançase revertê-las, acasose lembrem demais em nós.Façamos, meu bem, de conta- mas a conta não existe -que é tudo como se fosse,ou que, se fora, não era.Meu bem, usemos palavras.façamos mundos: idéias.Deixemos o mundo aos outrosjá que o querem gastar.Meu bem, sejamos fortíssimos- mas a força não existe -e na mais pura mentirado mundo que se desmente,recortemos nossa imagem,mais ilusória que tudo,pois haverá maior falsoque imaginar-se alguém vivo,como se um sonho pudessedar-nos o gosto do sonho?Mas o sonho não existe.Meu bem, assim acordados,assim lúcidos, severos,ou assim abandonados,deixando-nos à derivalevar na palma do tempo- mas o tempo não existe -,sejamos como se fôramos
num mundo que fosse: o Mundo.
____ Carlos Drummond de Andrade/Claro Enigma *
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